A NATUREZA POLICIAL DO SISTEMA DE SEGURANÇA PÚBLICA BRASILEIRO

1898

A NATUREZA POLICIAL DO SISTEMA DE SEGURANÇA PÚBLICA BRASILEIRO: CONCENTRAÇÃO E SOBREPOSIÇÃO DO NÍVEL ESTADUAL

A Constituição Federal de 1988 pode ser apontada como o marco legal e inaugural para a estruturação e sedimentação dos conceitos elementares que informam a doutrina de funcionamento do Sistema de Segurança Pública Brasileiro.

Pela primeira vez na história das Constituições do país, o assunto da segurança pública recebeu tratamento individualizado, por meio da concentração em um único dispositivo do rol de órgãos com atribuição para atuar no segmento (Brasil,1988).

Em apertada síntese, o sistema concebido pela última Carta Magna é integrado por organizações policiais federais e estaduais e, de modo facultativo, pelas Guardas Municipais.

O nível federal é constituído pela Polícia Federal, pela Polícia Rodoviária Federal epela Polícia Ferroviária Federal1. No nível estadual, as Polícias Militares e as Polícias Civis são órgãos permanentes voltados a atividades de segurança pública. No nível municipal, a formação de corpo uniformizado de segurança poderá acontecer, caso seja do interesse da administração local.

De modo irregular e incidental, são distribuídas entre os diversos organismos policiais atribuições correspondentes às duas modalidades elementares de atuação policial: preventiva e repressiva.

As atribuições preventivas são exercidas maciçamente por meio do policiamento uniformizado e tem como alvo, além da prevenção e controle do crime, de modo restrito, a preservação da ordem pública, em sentido amplo.

Já as atribuições repressivas são desenvolvidas por meio de atividades restaurativas e investigativas e tem como centro de gravidade o fenômeno criminal, assim definido pela legislação criminal infraconstitucional.

Via de regra e naquilo que se refere às violações criminais, as organizações policiais mencionadas pelo texto constitucional são dotadas predominantemente de atribuições associadas a apenas um dos ramos de atuação policial.

A única exceção é a Polícia Federal, tida como organização policial híbrida, pois congrega, entre o seu vasto repertório de atividades, tanto atribuições de natureza preventiva (proteção de fronteiras), como de natureza repressiva (repressão das infrações penais praticadas contra a ordem política e social).

Note que a singularidade de atribuições é uma característica muitas vezes apenas idealizada pelos textos legais, uma vez queé muito difícil, senão impossível, limitar a atuação do policiamento uniformizado ao segmento preventivo, particularmente nos casos em que os ativos policiais ostensivos deparam com infrações em curso.

Nesses contextos, não é crível a interrupção do atendimento policial, pelo simples fato de ter se convertido em repressiva, intervenção primitivamente preventiva.

Esse fenômeno enseja a sobreposição necessária entre as organizações policiais de matizes diversas (preventiva e repressiva), quando a infração constatada pelo segmento uniformizado tem natureza criminal.

É particularmente relevante no plano estadual, onde, conforme será apresentado mais adiante neste ensaiose concentra a maior parcela da entrega do serviço policial brasileiro.
No nível federal,a polícia com atribuição investigativa, além de híbrida, não tem tamanho e nem estrutura para se ressentir de eventuais invasões de competência protagonizadas pelas organizações policiais preventivas (PM, PRF etc.).

O nível municipal, por sua vez, não é dotado de estrutura policial investigativa, pois não há nesse nível órgão judiciário, para onde seriam destinados os resultados das atividades de condão investigativo criminal.

A esse respeito, importa também mencionar que é a partir dessa ação investigativa, fomentadora da prestação jurisdicional em seara criminal, que deriva a denominação ‘polícia judiciária’, aplicável às polícias de matiz investigativa, e/ou repressiva (Polícia Federal e Polícias Civis).

Ainda sobre as atribuições das organizações policiais repressivas, cumprem dois esclarecimentos introdutórios, que vão também no sentido da falta de singularidade de atuação das organizações policiais. Primeiro, polícia judiciária não é sinônimo de investigação criminal e segundo, investigação criminal não é uma atividade privativa da polícia.

A maioria dos doutrinadores tem prelecionado que a expressão ‘polícia judiciaria’tem conteúdo diverso, até complementar, em relação ao conceito de ‘investigação criminal’, como atividade repressiva policial (SANTIN, 2007; 2013); enquanto a primeira seria caracterizada pela ação eminentemente cartorária, que se consumaria com a transferência formal (documental, burocrática etc.)dos elementos de prova às instâncias judiciais, a segunda corresponderia a atividades de campo destinadas à produção material das evidências investigativas.

Essa distinção, que num primeiro momento parece apenas semântica, se revela importante do ponto de vista operativo. O texto constitucional não fixa a exclusividade da investigação criminal como prerrogativa das organizações policiais de matiz repressiva, o fazendo apenas no plano federal, quando versa exclusivamente sobre o tema da polícia judiciária.

Dito de outro modo, a atual redação do texto constitucional induz à consagração do princípio da universalidade da investigação criminal3, festejado por diversos órgãos públicos que ambicionam a autonomia investigativo-criminal (Ministério Público, Receita Federal, Casas Legislativas de todos os níveis etc.), ao mesmo tempo em que autoriza tacitamente o exercício da polícia judiciária (i.e., o interface formal/documental com o Poder Judiciário) no nível estadual por organização policial diversa da Polícia Civil.

Tanto é assim que a elaboração do Termo Circunstanciado, um dos mais celebrados institutos da Lei n. 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), ato típico de polícia judiciária, pois corresponde à interface cartorária entre polícia e judiciário, vem sendo promovido pelas Polícias Militares brasileiras, de modo definitivo ou experimental, sem que nenhuma alteração do texto constitucional fosse sequerespeculada (CÂNDIDO, 2016; SANÇANA, 2018).

Para fazer frente a esse cenário marcado pela fragmentaçãoe descoordenaçãodas ações do Sistema de Segurança Pública, foi aprovada e sancionada no mês de junho de 2018, a Lei Federal n. 13.675, com o objetivo de disciplinar a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública nacional, atendendo ao comando regulatório do parágrafo 7º. do aludido artigo 144 da CF/88, mesmo que com 30 anos de retardo.
Muito embora o artigo 1º. do mencionado dispositivo legal tenha redação bastante ambiciosa, ao prever a instituição de um Sistema Nacional de Segurança Pública (SUSP), a almejada conjugação e coordenação de esforços, que inclusive extrapola a lista de órgãos fixada pela Carta Constitucional (o texto da lei prevê a mobilização dos agentes penitenciários, dos institutos de criminalística e médico-legal etc.), ainda não passa de uma carta de intenções.

Sistema ‘policial’ de segurança pública brasileiro

Para que seja possível compreender no que consiste a orientação estritamente policial do Sistema de Segurança Pública, é fundamental alguma ponderação a respeito da imprecisão do termo ‘segurança pública’, quando apresentado pelo ordenamento jurídico brasileiro (FBSP, 2011).

Partindo da ambiguidade estampada inicialmente no caput do artigo 144 da Constituição da República, que insinua uma suposta derivação da segurança pública das ações voltadas à preservação da ordem pública e à incolumidade das pessoas e do patrimônio, a análise da legislação doméstica parece indicar certa circularidade entre o sentido dado à expressão ‘segurança pública’ e outras de imprecisão jurídica similar como é exemplo‘ordem pública’ (FBSP, 2011).

Com base na disciplina imposta pela maior expressão jurídica a respeito do tema intui-se que segurança pública, como direito social e condição concretamente almejada, é obtida em condições em que a ordem pública e a integridade das pessoas e do seu patrimônio se manifestem suficientemente preservadas.

Ordem Pública como objeto central do Sistema

Incolumidades pessoal e patrimonial correspondem à dimensão material da segurança pública, pois passível que são de delimitação física e por corresponderem a condição concretamente observável.

As dificuldades surgem quando as atenções se voltam para a expressão ‘ordem pública’, dimensão cuja abstração tem historicamente recebido a atenção da doutrina jurídica mundial (LAZZARINI, 1998).

Há consenso, porém, segundo as palavras de Salvat (LAZZARINI, 1998), no sentido de que ela (a Ordem Pública) se constitui dos princípios superiores que formam a base da vida jurídica e moral de cada povo, formando um sistema destinado a defender altas concepções (morais, políticas, religiosas e econômicas) que fundamentam a organização da sociedade.

Obedece a noção a critérios contingentes, históricos e nacionais, portanto, variáveis no tempo e no espaço. Foi, no entanto, a lição de Vedel (in LAZZARINI, 1998) que, pela primeira vez apresentou de forma integralizada o conceito de Ordem Pública formado por três aspectos, dentre os quais não surpreendentemente aparece o referente à segurança, como sinônimo de estado antidelitual, ao lado de salubridade e tranquilidade pública.

Luis Rolland, Professor de Direito Público Geral da Faculdade de Direito de Paris, ao tratar do tema política administrativa, enfatizou o conceito de Ordem Pública composto pelos mesmos três temas centrais (segurança, salubridade e tranquilidade), associando-o às atribuições naturais das organizações policiais.

Afirma o autor, renomado administrativista francês, ter a polícia a função básica de assegurar a boa ordem, isto é, a tranquilidade pública, a segurança pública e a salubridade pública. Assegurar as três coisas, pois a ‘Ordem Pública é tudo isso, nada mais do que isso’ (ROLLAND apud LAZZARINI, 1998).

Portanto, se considerarmos que o Direito Administrativo brasileiro deriva do Direito Administrativo francês (LAZZARINNI, 1998) e que é o Direito Administrativo o ramo do Direito Público que se dedica à regulação da atividade de toda a Administração Pública, universo em que insere as organizações policiais, parece razoável intuir que o tema da segurança pública no Brasil esteja adstrito à ação das organizações policiais.

Fragmentação da Persecução Criminal

Atribuir o tratamento institucional da complexa questão da segurança pública às polícias brasileiras não está isento de importantes efeitos colaterais. Há consenso científico em torno da multidisciplinaridade das causas da criminalidade e das intervenções voltadas ao seu controle e prevenção.

O arranjo policialmente guiado do Sistema de Segurança, em termos práticos, acabou por desonerar do combate à criminalidade, instituições com atuação na Persecução Criminal, que justamente por isso exercem papel indispensável para a promoção da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, como são exemplos o Ministério Público, o Poder Judiciário e o Sistema Prisional.

Assim como não é correto afirmar que segurança pública se resume à prevenção e controle da criminalidade, também não é razoável recusar que são essas atividades que integram o núcleo das ocupações do segmento da segurança.

A Segurança pública é promovida primordialmente por meio da preservação da ordem pública, que corresponde a um estado concreto que se observa, é verdade, não apenas enquanto o flagelo da criminalidade é mantido sob controle, mas especialmente por isso.
Tanto isso é verdade que globalmente o arranjo institucional concebido pelos governos nacionais para o enfretamento da criminalidade, tanto preventiva como repressivamente, é denominado Sistema de Justiça Criminal, por envolver esforços das três instâncias institucionais com afinidade temática: polícia, justiça criminal e cadeia BEATO, 2008; BECKER, 1968; CANO, 2009; CANTER, 2010; CARNEIRO, 2009; COMITÊ DE REVISÃO DE PESQUISA, 2004; FREITAS, 2002; GOTTFREDSON e HIRSCHI, 1990; KELLING, PATE, DIECKMAN e BROWN, 1974; McGUIRE, 2004).

O caso norte-americano é bastante pedagógico a esse respeito. Em 1967, o relatório da comissão presidencial sobre o ‘Desafio do Crime numa Sociedade Livre’ (tradução do autor), ao reforçar as dúvidas sobre a efetividade institucional no combate ao crime nos Estados Unidos, deixa claro que a ação revisional eventualmente imposta não se resumiria a reformas policiais, como o que frequentemente é proposto pelos ‘especialistas’ tupiniquins:

Garantir a segurança é, por certo, uma missão fundamental para as forças policiais, visceralmente associado a ações multi-agenciais que, no específico caso do enfrentamento à criminalidade, devem ser pensadas de modo sistêmico.

No Brasil, o conjunto de ações, estratégias e órgãos mobilizadas institucionalmente com o fim de lidar com o dilema da criminalidade recebe o nome de Ciclo de Persecução Criminal e está dividido, a exemplo do que ocorre estruturalmente com o Sistema de Justiça Criminal, em três instâncias: Fase Policial ou pré-processual, Fase Processual eFase Prisional.

Figura 1 – Quadro Esquemático sobre o Ciclo de Persecução Criminal

Todas as instâncias, cada qual por meio do seu repertório próprio de atuação, buscam prevenir e controlar os avanços da criminalidade, amparadas principio logicamente pela lógica da dissuasão, derivada da ameaça ou consumação da punição. A polícia uniformizada se vale do policiamento ostensivo e das prisões em flagrante; a polícia repressiva, da investigação criminal; o judiciário, do processo-crime e o sistema prisional, da gestão da pena, todos tidos como mecanismos dissuasórios gerais (i.e., voltados a toda a comunidade passível do cometimento de crimes) e específicos (i.e., voltado a pessoa do criminoso identificado, processado e/ou condenado) (McGUIRE, 2004).

Ao tratar segurança pública como um problema exclusivamente policial, portanto, a Constituição Federal contribui para consolidação de um pensamento atomizado entre as agências que atuam no Ciclo de Persecução Criminal.

O caso da audiência de custódia é um exemplo sintomático da fragmentação endêmica que aflige a segurança pública nacional.

Introduzida em território brasileiro como consequência de acordos internacionais de natureza humanitária, a audiência de custódia é uma das raras, senão a única, política pública do segmento da segurança pública patrocinada preponderantemente pelo poder judiciário.

Em virtude da sua natureza humanitária, tem como finalidade declarada a condução da pessoa presa em flagrante pela polícia à presença do juiz, para que seja analisada pelo magistrado, dentre outros, a legalidade da prisão e a conveniência da conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva.

Diz-se finalidade declarada, porque, em verdade, o grande objetivo do poder judiciário foi e ainda é o da desoneração do sistema prisional, já lotado e funcionalmente comprometido, por meio redução do encarceramento considerado juridicamenteprescindível.

Importa mencionar a esse respeito que a literatura tem se ocupado do estudo dos impactos da audiência de custódia sobre o movimento da criminalidade e das atividades policiais, dividindo-os em quatro categorias principais de apreciação: aumento da oferta de criminosos, decorrente do incremento do volume de liberações a título de liberdade provisória e relaxamento da prisão em flagrante; redução da atividade policial repressiva, associada à famigerada criminalização da atividade policial, que tem funcionado como estratégia de defesa para obtenção do relaxamento das prisões; recrudescimento nominal da criminalidade, consequência das condições anteriores e deterioração da percepção de segurança, associado à difusão de um cenário de impunidade generalizada.

Ocorre que em nenhum momento, desde a concepção até a suas seguidas avaliações de rumo, os impactos da audiência de custódia sobre a oferta de criminosos e crimes foi avaliada ou sequer especulada pelos seus defensores e idealizadores. Muito embora não seja ainda possível atribuir à introdução da audiência de custódia algum recrudescimento da criminalidade em São Paulo, é inegável que a liberação precoce de criminosos contumazes causou impactos negativos no meio policial (desestimulo à repressão) e comunitário (sensação de insegurança) (POSSATO, 2017).

Figura 2 – Gráfico da distribuição das deliberações em audiência de custódia SP
Fonte: Conselho Nacional de Justiça, 2020

Vista como programa de desencarceramento, a audiência de custódia parece muito mais alinhada aos interesses da Administração Penitenciária, ao mesmo tempo em que se apresenta capaz de limitar de modo quase que proibitivo a eficiência das medidas de natureza repressiva encetadas pelas organizações policiais.

O mesmo prejuízo decorrente da falta de compromisso sistêmico pode ser especulado com respeito às políticas de encarceramento, de espectro policial.

O encarceramento adotado de modo isolado tem sim o potencial de impactar sobre o funcionamento e efetividade do Sistema Prisional, uma vez que limita a reabilitação, precariza as condições do cárcere, induz a fugas, motins e o surgimento e sistematização das facções criminosas, o que obviamente causa prejuízo ao interesse da segurança pública, vista como um todo.

Protagonismo Estadual

Jose Afonso da Silva (apud LOPES, 2012) assevera que muito embora existam competências repartidas entre os entes federativos, compete aos Estados-membros a organização da segurança pública do país, pois a atuação da União e dos Municípios é limitada a algumas especialidades.

A centralidade do Estado-membro na oferta da segurança pública não se resume à retórica jurídica. É possível demonstrar empiricamente essa condição, por meio da mensuração do alcance e impacto da participação no segmento de cada um dos níveis de governo.

Muito embora inexista disposição constitucional taxativa a respeito da concentração das atividades de segurança pública no âmbito estadual, a análise detida da distribuição das atribuições preventivas e repressivas entre os níveis federal, estadual e municipal não deixa dúvidas a respeito do protagonismo estadual.

No âmbito preventivo, as atribuições policiais estão distribuídas entre os três níveis de governo. Do lado repressivo, as atribuições policiais aparecem apenas nos níveis federal e estadual.

Em nível federal, a atribuições preventivas são exercidas pela Polícia Federal em matéria de tráfico de entorpecentes, contrabando e descaminho, e no âmbito da polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; pela Polícia Rodoviária Federal, no espectro da malha rodoviária federal.

No plano estadual, pelas Polícias Militares, por meio da polícia ostensiva geral, voltada ao atendimento de todas as demandas não atendidas pelas especialidades federal e municipal; e no plano municipal, pelas Guardas Municipais, destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações.

As atribuições repressivas, por sua vez, são exercidas pela Polícia Federal, em âmbito federal, e pelas Polícias Civis, em âmbito estadual.

Pela Polícia Federal, repressão se dá pela via da polícia judiciária da União, e pela via da apuração das infrações penais praticadas contra a ordem política e social, em detrimento de bens serviços e interesses da União, e que tenham repercussão interestadual ou internacional.

As polícias civis exercem suas atribuições repressivas por meio da polícia judiciária estadual e da apuração das infrações penais, exceto as militares.

Em matéria preventiva, as atividades se concentram abundantemente no âmbito estadual, uma vez que, as atribuições federais e municipais se reservam a algumas especialidades, como apontado por Jose Afonso da Silva (apud LOPES, 2012).

Tomando como exemplo o policiamento rodoviário, que ocorrem nos níveis federal e estadual, as dimensões rodoviárias correspondentes indicam a prevalência quase que absoluta da ação estadual. Ao passo que a malha rodoviária federal tem 61 mil quilômetros de extensão, a malha rodoviária apenas do Estado de São Paulo é corresponde a 35 mil quilômetros de estradas. O mesmo se reflete no contexto repressivo.

As atividades investigativas, apesar de compartilhadas entre os níveis federal e estadual, se concentram exuberantemente no nível estadual.

O volume de crimes sujeito a apuração conduzida pelas polícias civis, em regra, corresponde à parcela sujeita à jurisdição estadual, que predomina em relação à federal, uma vez que é dotada de um tipo de competência denominada residual, isto é, será sempre competente quando não se tratar de assunto sujeito à justiça especial (militar e eleitoral) ou à própria justiça federal.

Do ponto de vista orçamentário, a proeminência estadual é ainda mais destacada. Atualmente, 85% dos gastos do setor são custeados pelos Estados Membros, ao passo que a União contribui apenas com 9% dos valores globais investidos no segmento da segurança pública (PNSP, 2018).

Tem-se, portanto, como regra o protagonismo estadual em matéria de segurança pública, apesar das recentes demonstrações de intenção em ampliar a participação no segmento, da parte da União.

Tanto diretamente, por meio do suporte financeiro-orçamentário (Fundo Nacional de Segurança Pública – FNSP), da busca pela maior integração do Sistema (Secretaria Nacional, SUSP, PNSP etc.), da formulação de diretrizes (Conselho Nacional de Segurança Pública) e do suporte operativo por meio da mobilização de recursos (Força Nacional de Segurança Pública); como indiretamente, por meio do fomento da maior participação dos municípios (criação de Guardas Municipais, funcionamento de Gabinetes de Gestão Integrada etc.), o governo Federal vem dando claras indicações de uma maior devoção ao tema, apontado como meio eficaz para mitigar o problema da fragmentação e ineficiência a ela atrelada.

Uma das únicas exceções que se impõe ao protagonismo estadual em segurança pública se refere ao Decreto Presidencial de intervenção federal, com o objetivo de pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública, ocasião em que é nomeado um interventor federal, para que, durante tempo determinado e em nome do governo federal, enfrente a situação que declaradamente superou a capacidade de condução dos Governos Estaduais.

O único caso de intervenção federal havido durante a vigência da atual Constituição da República se deu no ano de 2018, no Estado do Rio de Janeiro, que culminou com a absorção pelo governo federal das atribuições estaduais do segmento da segurança pública.

Sobreposição policial do nível estadual: ciclo incompleto de polícia

No plano estadual, a fragmentação e desarticulação que maculam o funcionamento do Sistema de Segurança Pública é agravado pela sobreposição que marca as relações mantidas entre as organizações policiais estaduais, especialmente relevante em matéria criminal.

Em que pese viger o princípio da singularidade de atribuições entre as organizações policiais, em termos práticos é irrealizável circunscrever a atuação das Polícias Militares ao segmento preventivo, nos casos em que os ativos uniformizados deparam com infrações penais em curso. Nesses contextos, não é crível a interrupção do atendimento policial, pelo simples fato de ter se convertido em repressiva, intervenção primitivamente preventiva.

A consolidação, durante o processo constituinte de 1987, da expressão ‘preservação da ordem pública’ como uma das atribuições precípuas das Polícias Militares estaduais se prestou à inserção do modelo policial misto (i.e., preventivo e repressivo) no âmbito dessas organizações.

Dito de outro modo, reconhecer que compete à Polícia Militar não apenas prevenir, como também restabelecer a ordem eventualmente subtraída, significou constitucionalizar a repressão criminal levada a efeito por essas organizações no momento da constatação da prática delituosa, designada por essas razõesrepressão imediata (CRETELLA Jr, 1998; LAZZARINI, 1998; MEIRELLES, 1998).

Tendo essa particular condição e com o objetivo de melhor acomodar as práticas sistematizadas por ambas as organizações policiais, foi cunhado por doutrinadores o modelo esquemático denominado Ciclo de Polícia, para descrever gráfica e objetivamente os limites de atuação complementarentre as Polícias Militar e Civil (CRETELLA Jr, 1998; LAZZARINI, 1998; MEIRELLES, 1998).

Denominado Ciclo Incompleto de Polícia, em virtude do percurso incompleto do ciclo preventivo-repressivo por cada uma das duas organizações policiais envolvidas, o esquema idealizado, com feições de modelo de articulação interinstitucional, teve a pretensão de prevenir a incidência de dois desdobramentos indesejáveis, quais sejam a sobreposição de recursos e o conflito positivo de competências.

De modo resumido, é atribuída à primeira parte do ciclo de polícia a designação ‘Fase de Normalidade’, caracterizado pela ausência de violações da ordem pública em todos seus aspectos (tranquilidade, salubridade e segurança), e pela predominância de intervenções policiais de natureza assecuratórias fundadas no direito administrativo (poder de polícia). Nesse contexto, prevenção criminal é apenas um segmento, muito embora seja o mais representativo.

Figura 3 – Modelo Esquemático dos Ciclos de Polícia e de Persecução Criminal
Fonte: Lazzarini, (1996, p. 97).

A segunda e última parte do ciclo, denominada ‘Fase de Anormalidade’, se desdobra em categorias em virtude do tipo de regra violada (costumeira, administrativa e criminal), impõe a transferência de responsabilidade entre as instituições policiais estaduais, apenas no caso da ocorrência de violação de natureza criminal.

A Fase de Anormalidade é caracterizada, portanto, pela predominância de intervenções policiais de natureza repressivas e, quando voltadas às violações criminais, fundam-se no direito processual penal.

A repressão criminal policial, considerada apenas auxiliar da repressão criminal integral, que é privativa da autoridade jurisdicional, se divide emimediata (imposta no momento imediatamente posterior a ocorrência do delito e da alçada de ambas as organizações policiais) e mediata (realizada a partir da investigação criminal e da alçada da Polícia Civil) (CRETELLA Jr, 1998; LAZZARINI, 1998; MEIRELLES, 1998).

A nova disciplina constitucional não inovou, apenas reconheceu juridicamente a existência de um modelo de atuação policial militar misto (NETO, 1998) que, no âmbito das infrações penais, não se presta apenas a prevenir, mas também à restituição imediatada ordem violada, por meio da prisão daqueles que se encontrem em flagrante delito.

É, portanto, a prisão em flagrante o marco divisório da atuação policial militar no âmbito da repressão criminal ordinária, segundo o modelo esquemático denominado Ciclo Incompleto de Polícia.

Figura 4 – Quadro Esquemático sobre o Ciclo Incompleto de Polícia
Fonte: os autores(2020).

Críticas ao Ciclo Incompleto de Polícia

O recrudescimento da criminalidade registrado nas décadas subsequentes ao restabelecimento do regime democrático no nosso país induziu ao aquecimento dos debates em torno de uma presumida ineficiência das organizações policiais brasileiras na prevenção e controle do fenômeno criminal.

Dentre as diversas questões levantadas pelos debatedores8, a falta de continuidade na prestação do serviço policial, decorrente da vigência do ciclo incompleto de polícia no nível estadual, tem ocupado posição de destaque como causa potencial para a especulada crise de eficiência policial (CÂNDIDO, 2017).

Dentre as soluções mais comumente levantadas como capazes de prevenir a solução de continuidade aos fluxos de atendimento policial, ou seja, conducentes ao ciclo completo de polícia, destacam-se pela sua evidente oposição a unificação das organizações policiais, associada a desmilitarização do policiamento ostensivo e mitigação operacional, estabelecida a partir da implantação do percurso completo no ciclo preventivo-repressivo pelas Polícias Militares, circunscrito a algumas circunstâncias específicas, caracterizadas pela dispensabilidade da investigação criminal, o que é evidente nos casos de prisão em flagrante, uma vez que nessas condições incidem tanto a certeza de autoria, como elementos suficientes da materialidade delitiva.

A introdução do Ciclo Completo pela via da unificação das polícias militares e civis, associada à desmilitarização, se demonstrou politicamente insustentável. Segundo Beato (2000), no Brasil, a melhor forma que se encontrou para não mudar nada na estrutura e funcionamento das suas organizações policiais foi propor reformas radicais que buscavam mudar tudo, como são exemplo abundantes a unificação das polícias estaduais e a desmilitarização das Polícias Militares.

A mitigação operacional do Ciclo Incompleto para os crimes de menor potencial ofensivo (Lei Federal 9.099/95), por outro lado, já é realidade em 13 Estados da Federação.

Nessas localidades, as prisões em flagrante realizadas por policiais militares, versando sobre crimes de menor potencial ofensivo, abrangidos pela Lei 9.099/95, culminam com a lavratura do correspondente Termo Circunstanciado (TC) pelos policiais militares empenhados na intervenção.

Duas são as consequências práticas já observadas a partir da lavratura do TC pela Polícia Militar, ambas derivadas da superior celeridade que seria empreendida ao procedimento policial: incremento do patrulhamento ostensivo, decorrente da redução do tempo de empenho dos ativos policial militares em procedimentos cartorários, famosos pela abusiva morosidade e redução dos transtornos impostos às vítimas e testemunhas desses episódios, uma vez que são exaurientemente atendidos pelo primeiro ativo policial com o qual tem contato (não há necessidade de comparecimento à repartição policial para o registro do episódio criminal, que passa a ser realizado no local dos fatos).

Ora, se os resultados são evidentemente positivos no contexto dos crimes de menor potencial ofensivo, por que não estender a mitigação do Ciclo Incompleto para os crimes não sujeitos ao Termo Circunstanciado? Dito de outro modo, por que a Polícia Militar não assume a condução dos atos de polícia judiciária para todos os casos em que promova a prisão em flagrante?

Existem algumas distinções de cunho prático que precisam sim ser levadas em consideração, para que essas perguntas sejam suficientemente respondidas. As principais dizem respeito a custódia do preso e o empenho de ativo policial militar em atividade burocrática mais complexa.

Enquanto no caso do cometimento de crime de menor potencial ofensivo, o preso em flagrante é, geralmente, liberado, depois de assinar o termo de compromisso de comparecimento em juízo, nos crimes não abrangidos pela Lei 9.099/95, a regra é a custódia. Com respeito ao empenho burocrático de ativos policiais militares, é difícil imaginar que seja possível o atendimento exauriente do episódio no local dos fatos.

Decorrem, portanto, da mitigação em caso de crime grave, dois desdobramentos operacionalmente relevantes à atuação primitiva das Polícias Militares; um de natureza estrutural e outro de natureza formal.

Da banda estrutural, haverá substituição dos ativos policiais civis por militares, nas atividades de guarda do preso, enquanto estiver custodiado em repartição policial e até que seja apresentado ao juízo da custódia e de escolta de preso para o fim da famigerada apresentação ao juízo da custódia, além do empenho do ativo policial militar em atividade burocraticamente complexa(a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante Delito), o que reverteria em prejuízo ao patrulhamento ostensivo.

Primeiramente, no que se refere à mencionada guarda do preso em flagrante, não parece razoável insinuar a necessidade de aplicação adicional de ativos policiais militares, vez que existem muito mais repartições policiais militares do que policiais civis no território nacional. Todas são guarnecidas por policiamento fixo, de modo que a custódia do preso seria apenas mais uma atribuição a ativo policial já existente.

Tratando agora do tema da escolta do preso ao juízo da custódia, é possível especular que a absorção dessa demanda por parte da Policia Militar poderia operar como causa de precarização do patrulhamento ostensivo, uma vez que o volume de apresentações é alto em todo o Estado e que a sistemática da audiência de custódia ainda se encontra em expansão em território nacional.

A respeito da última questão de fundo estrutural levantada (empenho em atividade burocrática complexa), importa destacar que, com base no que já ocorre com o Termo Circunstanciado, é possível prospectar um cenário promissor com respeito ao APFD elaborado no âmbito das Polícias Militares.

O uso de tecnologia de ponta, aliado a efetividade do treinamento policial militar, ambos voltados à otimização dos processos, é capaz de dar maior celeridade aos procedimentos que integram a preparação do APFD.

Ademais, policiais militares já elaboram Boletins de Ocorrência, lavram flagrantes e instauram inquéritos (esses dois últimos nos casos de crimes militares). ‘Tais ritos são, portanto, conhecidos e praticados pelos policiais militares, o que revela a expertise das Polícias Militares nos registros dos ilícitos penais’ (CÂNDIDO, 2017, p, 2).

Pela banda formal, poderão ser levantadas questões relacionadas à falta de habilitação jurídica dos membros da Polícia Militar para promover um registro da complexidade do APFD.

A respeito desse último ponto, importa mencionar que a minirreforma a que se submeteu o Código de Processo Penal (CPP) no mês de abril de 2011, com a entrada em vigor da Lei Federal n, 12.403, a prisão em flagrante deixou de ter natureza jurídica de medida precautelar e passou a ser considerada mero ato administrativo, levado a termo no âmbito policial e que, tendo em vista sua precariedade formal (uma vez que se reveste de natureza jurisdicional), carece da aprovação judicial imediata.

Em outras palavras, as mudanças promovidas ao CPP pela Lei Federal n. 12.403/2011 reduziram do alcance e o relevo da prisão policial (flagrante), que anteriormente se mantinha por período indefinido. Na atual redação do artigo 310 do CPP, a prisão em flagrante é mantida apenas até o momento em que se processa a revisão judicial, o que, com a introdução da audiência de custódia, pode ocorrer em menos de 24 horas.

Essa circunstância tem importância destacada, se considerarmos que um dos principais argumentos contrários à introdução do Ciclo Completo no âmbito das Polícias Militares, e em favor na ‘bacharelização’ no contexto policial brasileiro, tem sido o da necessidade de revisão por delegado de polícia (única carreira policial com exigência de bacharelado em direito no globo) das prisões em flagrante promovidas por policiais operacionais, sejam eles civis ou militares.

Ora, se a revisão promovida por Delegado de Polícia é refeita em âmbito judicial em menos de 24 horas, porque sacrificar o interesse público com a imposição de duplicado esforço policial (concurso das duas organizações policiais) para o registro das prisões em flagrante?

Importa apontar a esta altura que o mencionado sacrifício recai direta e importantemente sobre as vítimas dos delitos, que, depois de devastadas em seus interesses mais preciosos pelo flagelo da criminalidade (vida e patrimônio), se veem mais uma vez constrangidas pelos rituais impostos juridicamente pelo instituto do devido processo legal10. Denominado vitimização secundária, esse conjunto de formalidades estabelecido para o reconhecimento da responsabilidade criminal (seguidas declarações, reconhecimentos pessoais, acareações etc.)acaba por afastar as vítimas dos crimes da ação institucional voltada à prevenção e controle do crime (GOMES e MOLINA, 2000).

Convém também mencionar que esta mitigação, alhures denominada Ciclo Completo de Repressão Imediata (ou Autoria Conhecida) (CÂNDIDO, 2017; SANÇANA,2018), induziria a melhora do trabalho investigativo, vez que a Polícia Civil poderia atuar exclusivamente nessa atividade, concedendo maior atenção à criminalidade complexa (o crime organizado), que demanda procedimentos investigativos avançados para que seja adequadamente enfrentado.

Atualmente, os resultados investigatórios não são expressivos, motivo pelo qual a maior parte da população carcerária paulista e brasileira advém das prisões em flagrante delito promovidas determinantemente pelas Polícias Militares (BERGMAN et al. 2013). Nos casos em que o criminoso não é preso pela ação imediata da polícia uniformizada, ‘saberá a vítima que o deslocamento à repartição policial-civil, quase sempre será, além de penoso, inútil’ (CÂNDIDO, 2017, p. 3), pois a capacidade de esclarecimento da polícia civil brasileira não passa de um dígito percentual (CNMP, 2017, apud CÃNDIDO, 2017).
O ‘vazio’ investigativo nesse importante ambiente delinquencial decorre determinantemente de um afastamento das polícias civis da atividade de apuração e esclarecimento de crimes, em consequência da opção feita pelos seus dirigentes no sentido do “cartoricismo”, associado à elaboração dos registros policiais. Obviamente, essa estratégia gera a impressão de que são necessários mais delegados, não para dirigir a investigação criminal, mas sim para (re)fazer o trabalhojá realizado previamente pelo policial militar”(CANDIDO, 2017, p. 3).

Considerações Finais

Ao tratar segurança pública como um problema exclusivamente policial, a Constituição Federal contribui para consolidação de um pensamento atomizado entre as agências que atuam no Ciclo de Persecução Criminal.

O arranjo policialmente guiado do Sistema de Segurança, em termos práticos, acabou por desonerar do combate à criminalidade, instituições com atuação na Persecução Criminal, que exercem papel indispensável para a promoção da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, como são exemplos o Ministério Público, o Poder Judiciário e o Sistema Prisional.

A fragmentação que se observa no Ciclo de Persecução Criminal se vê espelhada no ambiente policial. De modo irregular e incidental, são distribuídas pela Constituição Federal atribuições correspondentes às duas modalidades elementares de atuação policial (preventiva e repressiva) entre os diversos organismos policiais.

Via de regra e naquilo que se refere às violações criminais, as organizações policiais mencionadas pelo texto constitucional são dotadas idealisticamente de atribuições associadas a apenas um dos ramos de atuação policial, vez que é virtualmente impossível limitar a atuação do policiamento uniformizado ao segmento preventivo, particularmente nos casos em que os ativos policiais ostensivos deparam com infrações em curso.

Somado a essa condição operacional intrínseca ao funcionamento do Sistema de Segurança Pública brasileiro, a atual redação do texto constitucional induz à consagração do princípio da universalidade da investigação criminal, ao mesmo tempo em que autoriza tacitamente o exercício da polícia judiciária (interface formal/documental com o Poder Judiciário) no nível estadual por organização policial diversa da Polícia Civil.

O cenário é particularmente preocupante no nível estadual, onde está concentrada a oferta dos serviços de segurança pública. Muito embora inexista disposição constitucional taxativa a respeito da concentração das atividades de segurança pública no âmbito estadual, a análise detida da distribuição das atribuições preventivas e repressivas entre os níveis federal, estadual e municipal não deixa dúvidas a respeito do protagonismo estadual.

Tendo em consideração essa particular condição e com o objetivo de melhor acomodar as práticas sistematizadas por ambas as organizações policiais do nível estadual, foi cunhado por doutrinadores o modelo esquemático denominado Ciclo de Polícia, para descrever gráfica e objetivamente os limites de atuação complementar entre as Polícias Militar e Civil (CRETELLA Jr, 1998; LAZZARINI, 1998; MEIRELLES, 1998).

Denominado Ciclo Incompleto de Polícia, em virtude do percurso incompleto do ciclo preventivo-repressivo por cada uma das duas organizações policiais envolvidas, o esquema idealizado, com feições de modelo de articulação interinstitucional, teve a pretensão de prevenir a incidência de dois desdobramentos indesejáveis, quais sejam a sobreposição de recursos e o conflito positivo de competências.

Todavia, a falta de continuidade na prestação do serviço policial, decorrente da vigência do ciclo incompleto de polícia no nível estadual, tem ocupado posição de destaque como causa potencial para uma especulada crise de eficiência policial (CÂNDIDO, 2017).

Dentre as soluções mais comumente levantadas como capazes de lidar com a corrente solução de continuidade do serviço policial, destaca-se a implantação do percurso completo no ciclo preventivo- repressivo pelas Polícias Militares, circunscrito a algumas circunstâncias específicas, por isso denominado Ciclo Incompleto mitigado. Essas condições específicas que ensejam a introdução parcial do ciclo completo de polícia são caracterizadas pela dispensabilidade da investigação criminal, o que é evidente nos casos de prisão em flagrante.

A mencionada mitigação do Ciclo Incompleto para os crimes de menor potencial ofensivo (ver Lei Federal 9.099/95) já é realidade em diversos Estados da Federação, tendo como consequência consolidada o incremento do patrulhamento ostensivo e a redução da vitimização secundária.

Quando se refere a crimes mais graves (não sujeitos a disciplina imposta pela Lei Federal
n. 9.099/95), a introdução do Ciclo Completo mitigado no âmbito das Policias Militares enseja atenção, face a distinções relacionadas especialmente à custódia do preso (guarda e escolta), à lavratura do APFD e aos desdobramentos estruturais e formais destas diferenças decorrentes.

A despeito disso e considerando as condições atuais de entrega do serviço policial observadas em todo o país, caracterizadas especialmente pelo afastamento das polícias civis da atividade de apuração e esclarecimento de crimes, a introdução do Ciclo Completo mitigado no âmbito da atuação das Polícias Militares para todas prisões em flagrante que realizar, é medida urgente, necessária, sem custos e juridicamente factível.

Autores:

Pedro Luis de Souza Lopes
Mestrado em Psicologia Forense e Investigação Criminal Universidade de Liverpool, Grã Bretanha
pedrosouza@policiamilitar.sp.gov.br

Ana Carolina Russo
Doutora em Engenharia de Infra-Estrutura Aeronáutica, Instituto Tecnológico de Aeronátutica, São Paulo, Brasil.
russo.anacarolina@gmail.com

Resumo
Este artigo foi desenvolvido pelos autores como uma das condições para conclusão do Programa de Doutorado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, do Centro de Altos Estudos em Segurança da Policia Militar do Estado de São Paulo, e se prestou a identificar e descrever articuladamente as peculiaridades do Sistema de Segurança Pública Brasileiro, caracterizado pela sua constituição exclusivamente policial, pela concentração de atividades no nível estadual e pela presumida sobreposição entre as atribuições dos órgãos policiais, especialmente daqueles situados na órbita estadual. A mencionada sobreposição do nível estadual é atualmente enfrentada pelo modelo de articulaçãointerinstitucional denominado Ciclo de Polícia, cuja efetividade tem sido duramente questionada por operadores policiais, pela literatura especializada, pelo segmento político e pelo público em geral. Tendo como pano de fundo as mudanças propostas pela Lei Federal n. 13.675/18 (Lei do Sistema Único de Segurança Pública/SUSP) e articuladas pelo Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, questões como a desarticulação decorrente da ação fragmentada dos órgãos do Sistema e o descompromisso com as pautas do interesse da segurança pública demonstrado pelos demais segmentos representados no Ciclo de Persecução Criminal. Conclusões preliminares são apresentadas a respeito da questão de pesquisa e indicações para futuras intervenções e investigações são articuladas.